Seria possível uma revelação de um “eu” oculto? Não… o que existe é uma variada
gama de experiências, situações, acontecimentos, ou, para resumir em apenas uma
palavra: perspectivas.
Tornar-se quem é implica em, antes de mais nada, reunir um
grande número de vivências. Explorar aquilo que se é torna-se então o primeiro
passo. Significa afirmar conhecer as forças que o constituem, que querem
dominar e crescer. Trata-se, em Nietzsche, sempre de uma afirmação mais forte
que a negação. O explorador afirma a si mesmo jogando-se no mundo.
“Torna-te quem tu és”, ou seja, aproprie-se das forças que o constituem, tome parte no movimento de auto-superação em curso constantemente dentro de si. O homem é um ponto do universo onde uma enorme quantidade de forças se concentram e se atravessam e por fim transbordam, uma roda que fia por si mesmo. Por isso é preciso afirmar-se de tal modo que se possa ir sempre no limite de si, expandindo-se. A expansão vem do cultivo das vivências, do cuidado e da
prudência de digerir e compreender o que nos acontece. É um processo que exige
atenção e prudência. Cultivar-se é fazer crescer as forças que nos habitam e
podar as ervas daninhas que insistem em crescer no meio de nós.
Seguindo por este caminho: vivências e cultivos, as
condições estão dadas. É preciso apenas jogar o jogo, ou talvez jogar-se no
jogo. Escolher os remédios certos, estar sempre atento para seus próprio
estados. Ser o senhor de sua grande saúde e, talvez mais importante, de sua
doença. Para Nietzsche, conhecer a si próprio é cuidar de si próprio,
exercitar-se nesta arte. Observar seus sintomas de decadência, elaborar um
diagnóstico preciso e prescrever os remédios no hora certa.
Quem sou eu? Ora, é impossível responder porque o tempo todo é preciso tornar-se quem se é! Quem ou o que somos? Um destino! Somos o conjunto de forças que
precisa o tempo todo elevar seu grau de afirmação até o limite, tornando-se
necessariamente diferente neste processo.
Quanta verdade suporta um espírito para a resposta mais
direta possível? Pois bem, não somos nada! Somos este caos que se perde nas
bordas de si mesmo, um animal na jaula, somos as ondas que batem contra o
rochedo, somos o deserto que se esparrama em um mapa de afetos, por onde os
ventos cruzam e as dunas se movem. O homem deve aumentar o número de
horizontes, e aprender a conjugar a verdade sempre no plural, criar e povoar
seus desertos. Ele mesmo deve ser o porta-voz da multiplicidade. Porque,
afinal, é disto que ele é feito!
Deixar de negar-se, deixar de iludir a si mesmo, deixar de se repartir e se esconder. “Sou fraco, sou um pecador, sou um fracassado, não posso fazer nada”, em que mundo essa afirmação poderia ser nietzschiana? Não! É necessário lutar contra a gravidade, deslizar, dar fluência. O eu é uma ilusão criada pela precária hierarquia interna do corpo.
Mas estas forças que nos constituem estão constantemente pressionando, arrastando, empurrando o homem de um lado para o outro. Quem crê no sujeito são os fracos. Tornar-se quem se é significa transvalorar os valores, escolher outros, novos, brilhantes. Encontrar um modo de vida propício ao aumento de suas próprias forças vitais.
A grande preocupação de Nietzsche é que a afirmação precisa
ser completa. Afirmar a si mesmo é também afirmar as condições do universo que
tornaram as forças ativas possíveis. Neste sentido, arrepender-se é errar duas
vezes. É preciso, antes de mais nada, dizer sim até para o que deu errado. Cada
negação é uma semente para o Ressentimento. Digerir o tempo, aprender a
necessidade do que foi. Um sim sempre se multiplica na cadeia de eventos que o
possibilitou.
O resultado desta máxima que o filósofo nos prescreve é
vencer o ressentimento, deixar de apontar o dedo na cara dos outros procurando
culpados. Deixar de apontar o dedo para si mesmo, buscando ferir-se. Não, é
preciso criar novos valores para tornar-se o que se é. É preciso estar sempre
alerta, em estado de guerra, tornar-se guerreiro e preparar-se para a batalha
constante. O conhecimento de si não pode acontecer sem um cuidado de si, que
permite um crescimento contínuo, um vir a ser infinito. Fazer de inimigos
aliados, aprender a navegar nas tormentas.
“Primeiro princípio: temos de precisar ser fortes: senão
nunca nos tornamos fortes” (Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos).
Podemos apenas
dar algumas coordenadas, mas o caminho deverá ser traçado por cada um. Primeiro
as vivências, é preciso um punhado de vivências para saber compreender cada vez
mais aquilo que se é. Mas não é apenas de vivências que vive o ser humano,
estas precisam ser cultivadas, para que cresçam, para que a parte mais forte de
nós nos mostre caminhos e possibilidades.
Em face disso tornamo-nos um destino,
a própria força em nós gera a diferenciação. O passado, o presente e o futuro
se fundem, não há mais um ponto de chegada. A grande saúde é este tornar-se o
que se é. Esta é a maior afirmação possível, é a redenção da realidade, a
possibilidade de transvaloração de todos os valores, é o grande e esperado Sim
que a vida aguarda e recebe exultante.
Uma longa travessia por vales e montanhas permite ao homem
ter direito a si mesmo, conquistar-se! Esta é, diz Nietzsche, a única maneira
de “tornar-se quem se é”, passando por uma enorme gama de experiências, de
acontecimentos que desdobraram o homem nas mais variadas formas.
Há aqui uma grande experiência de vida que provém das
andanças do espírito livre que atravessou muitas vivências! Pinta-se aquilo que
se é com a tinta das experiências na paleta das vivências. E quantas vezes não
foi preciso abandonar algo? Mas agora tudo retorna! Apenas este desprendimento
incondicional nos deu abertura para novas possibilidades!
E quando sabemos que chegamos? Somente quando a mais pesada das tarefas se
torna leve é que sabemos que chegamos. E, enfim o “assim foi”, transmuta-se em
“assim eu quis”. O homem de muitas
experiências e de muitas vivências é aquele capaz de cultivar seus próprio
solo, agora fértil o bastante para dar frutos! Mergulhar na existência como
maneira de superá-la, mas ainda dentro dela. Entre vivências e andanças, o
homem cultiva a si mesmo**.
"Um homem que vingou faz bem a nossos sentidos; ele é talhado em madeira dura, delicada e cheirosa ao mesmo tempo. Só encontra sabor no que lhe é salutar; seu agrado, seu prazer cessa, onde a medida do salutar é ultrapassada. Inventa meios de cura para injúrias, utiliza acasos ruins em seu proveito; o que não o mata o fortalece“
(Nietzsche, Ecce Homo)
desejo felicidadeS🙈🙉🙊
'MEMENTO MORI'💀
*O que diz sua consciência? – ‘torne-se aquilo que você é’”
– Nietzsche – Gaia Ciência, §270
**Nietzsche -“Torna-te quem tu és” , texto de Rafael Trindade – Extraído do site Razão Inadequada - adaptado)
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