PRIMEIRA PARTE
O Esoterismo em Fernando PessoaRetrato Caleidoscópico de Fernando Pessoa |
Tu, de quem o Sol é sombra,
De quem cadáver o mundo
Meus passos guia, a que ensombra
O sentir-se, ermo e profundo!
De quem cadáver o mundo
Meus passos guia, a que ensombra
O sentir-se, ermo e profundo!
Presença anonyma e ausente
De quem a alma é o véu
A meus passos de inconsciente
Dá o consciente que é teu!
De quem a alma é o véu
A meus passos de inconsciente
Dá o consciente que é teu!
Para que, passadas eras
De tempo ou alma ou razão,
Meus sonhos sejam espheras
Meu pensamento visão
De tempo ou alma ou razão,
Meus sonhos sejam espheras
Meu pensamento visão
22- 07- 1934
Isto escrevia o maior poeta português do século XX um ano antes da sua prematura morte. Este poema destila uma sabedoria profunda, uma profunda visão da alma e é como tantos outros escritos de Fernando Pessoa, uma bela flor aberta, nascida na terra de um conhecimento hermético e teosófico. Expõe, como faz Platão, a existência de um Sol espiritual, o LOGOS, cristalização radiante, soma e síntese de todos os arquétipos divinos, fonte de toda a vida, forma e lei na natureza. Logos do qual o Sol é a sombra e o símbolo. Do mesmo modo que o Sol, com a sua a luz e a sua energia, é quem mantém todo o dinamismo na natureza e é quem rege a vida do “nosso” universo; também o Logos ou Sol espiritual é o equivalente ao Deus de todas as religiões, a causa, a fonte e origem de todo o movimento, de toda a estrutura, de todo o número na Alma da Natureza, a quem os alquimistas e místicos medievais chamaram Anima Mundi. Este Logos é também a fonte de luz espiritual que alimenta e guia a alma nos caminhos da vida. E, como expressa o poeta, “a presença anónima e ausente de quem a alma é o véu”, quer dizer, o Ser verdadeiro de quem toda a alma é veste de luz e sombras.
Pessoa e o Caminho da Serpente.
Painel de azulejos cm alusões ao misticismo de Pessoa, seguindo os seus próprios diagramas manuscritos e poemas. Na Estação do Rossio.
Painel de azulejos cm alusões ao misticismo de Pessoa, seguindo os seus próprios diagramas manuscritos e poemas. Na Estação do Rossio.
Nos apontamentos de uma obra não concluída, cujo título diz já o carácter da mesma, “The Way of the Serpent”, afirmaria que “Shakespeare, desde que a Grande Fraternidade o chamou para si sem necessidade de lhe falar, pôde adquirir aquele domínio da sua própria alma que o ergueu, como arauto de sabedoria, por cima de todos os poetas do mundo, e é por ele que este homem que não perseguiu, mas com a substância íntima do seu ser, entrou na mais íntima, ainda que inconsciente, posse dos Maiores Segredos que o buscador Flood ou o mação Bacon. Em “A Tempestade” estão dados mistérios mais íntimos do que em todo Flood e estão aí expressos com suma beleza, porque têm o selo de Deus na Matéria, selo que é a mesma Beleza”.
Entre a infinidade de papéis, cerca de 27.000 manuscritos, que se acharam no baú onde Pessoa guardava tudo o que escrevia, como se fosse um gigantesco diário, encontraram um texto em que, de forma um pouco teatral e irónica, estabelece um pacto com um tal Jacob Satanás, afirmando para si mesmo uma regra de vida.
A sinceridade deste escrito está provada pelo seu modus vivendi e é um dos primeiros escritos ocultistas.
Está datado do dia 2 de Outubro de 1907 e com o nome de um dos seus heterónimos, Alexander Search; o poeta tinha então 17 anos.
A sinceridade deste escrito está provada pelo seu modus vivendi e é um dos primeiros escritos ocultistas.
Está datado do dia 2 de Outubro de 1907 e com o nome de um dos seus heterónimos, Alexander Search; o poeta tinha então 17 anos.
“Pacto entre Alexander Search, do Inferno, em alguma parte, com Jacob Satanás, Mestre, mas não rei, do mesmo sítio.
1 - Nunca deixar ou retrair-se do propósito de fazer o bem à humanidade.
2 - Nunca escrever coisas, sensuais ou de outro tipo más que possam ser causa de dano e ofensa aos que as lerem.
3 - Nunca esquecer, ao atacar a religião em nome da verdade, que a religião só é substituída com dificuldade e que o pobre ser humano chora nas trevas.
4 - Nunca esquecer os sofrimentos e as doenças dos homens”.
O sentimento do divino, como uma presença invisível e desconhecida, Deus, Céu, Ser Interior, Eu Divino, - o que importam os nomes, já que, para o que está para além da compreensão, os nomes são sempre prisões - começa a cristalizar-se de um modo alquímico no seu coração. É um sentimento e uma ânsia pura, feito de uma chama pura, como o lótus azul dos antigos egípcios, não contaminado ainda pela angústia e ruptura interior de ter traído o seu próprio caminho: o Mestre começa a perfilar-se na luz da sua Alma. Entre os seus manuscritos e datado no ano de 1912, encontrou-se esta oração. Começa assim:
“Senhor, que és o céu e a terra, que és a vida e a morte!
O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu! Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também. Onde nada está tu habitas e onde tudo está - (o teu templo) - eis o teu corpo.” |
Capa da Revista Águia, o primeiro número |
Estes são os anos de neo-paganismo de Pessoa, da Sociedade Renascença Portuguesa e da revista Águia. Entre fortes crises depressivas e uma actividade febril, iam nascendo e expressando-se na sua alma convicções e reconhecimentos que não são desta terra mas de um céu de Ideiais sublimes. Sabe já, tem uma perfeita claridade do que é a sua vida, para quê, a sua alma é alma de poeta e deve, portanto embelezar, ser, como diriam os Evangelhos, a levedura do pão do mundo. Entre os seus manuscritos achou-se um datado neste mesmo ano de 1907 que confessa:
“Tenho pensamentos que,
pudesse eu trazê-los à luz e dar-lhes vida,
emprestariam nova leveza às estrelas,
nova beleza ao mundo e mais amor ao coração dos homens”.
pudesse eu trazê-los à luz e dar-lhes vida,
emprestariam nova leveza às estrelas,
nova beleza ao mundo e mais amor ao coração dos homens”.
O seu grande problema foi, nestes anos e durante toda a sua vida, uma hiper-sensibilidade e uma instabilidade psicológica que ele mesmo qualificaria de “falta de vontade” e de “histeroneuroastenia”.
Livro do professor José Manuel Anes sobre Pessoa e o Esoterismo |
Em 1913, escreve um poema esotérico, Gládio, que logo incluiria na sua obra imortal, Mensagem, com o título de Dom Fernando, Infante de Portugal. Nele, o poeta descobre a sua alma juramentada a um Exército Celeste, quer dizer como um cavaleiro ao serviço da Vontade de Deus.
Deu-me Deus o seu gládio, porque eu faça
a sua santa guerra.
Sagrou-me seu em honra e em desgraça,
Às horas em que um frio vento passa
a sua santa guerra.
Sagrou-me seu em honra e em desgraça,
Às horas em que um frio vento passa
Por sobre a fria terra.
Pôs-me as mãos sobre os ombros e doirou-me
A fronte com o olhar;
E esta febre de Além, que me consome,
Pôs-me as mãos sobre os ombros e doirou-me
A fronte com o olhar;
E esta febre de Além, que me consome,
E este querer grandeza são seu nome
Dentro de mim a vibrar.
E eu vou, e a luz do gládio erguido dá
Em minha face calma.
Dentro de mim a vibrar.
E eu vou, e a luz do gládio erguido dá
Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois, venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.
Pois, venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.
Estava, sem dúvida, Pessoa a iniciar-se nos Mistérios da Vontade e da Mãe do Mundo. Em 1914 escreve, com o nome do seu heteró-nimo Álvaro de Campos, um dos poemas mais belos que alguma vez foi escrito. Dito poema não será editado até depois da sua morte e Pessoa parece evocar aqui os místicos órficos que rendiam em hinos apaixonados culto à Noite, mãe de todos os mistérios:
Vem, Noite antiquíssima e idêntica.
Noite Rainha nascida destronada.
Noite igual por dentro ao silêncio. Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.
(...)
Vem soleníssima,
Soleníssima e cheia
De uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e a vida pequena,
E todos os gestos não saem do nosso corpo,
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
E só vemos até onde chega o nosso olhar.
(...)
Vem, Noite silenciosa e extática,
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração...
Serenamente como uma brisa na tarde leve,
Tranquilamente com um gesto materno afagando.
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
E a lua máscara misteriosa sobre a tua face.
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes,
Ninguém te vê entrar.
Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,
A lua começa a ser real.
Noite Rainha nascida destronada.
Noite igual por dentro ao silêncio. Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.
(...)
Vem soleníssima,
Soleníssima e cheia
De uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e a vida pequena,
E todos os gestos não saem do nosso corpo,
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
E só vemos até onde chega o nosso olhar.
(...)
Vem, Noite silenciosa e extática,
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração...
Serenamente como uma brisa na tarde leve,
Tranquilamente com um gesto materno afagando.
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
E a lua máscara misteriosa sobre a tua face.
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes,
Ninguém te vê entrar.
Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,
A lua começa a ser real.
Em 1915, produz-se nele uma autêntica revolução espiritual e filosófica ao descobrir, “por acaso” as doutrinas teosóficas e a obra de H.P. Blavatsky. Pela primeira vez, o reencontro com a sua própria alma e com tudo aquilo que tinha ansiado tem lugar. Traduz os textos teosóficos A Voz do Silêncio, tratado místico que expõe o ideal de sacrifício e a Doutrina do Coração do Budismo Mahayana; Luz no Caminho, o livro dos Degraus de Ouro para despertar o deus que dorme em cada ser humano; Compêndio de Teosofia, Auxiliares Invisíveis, A Clarividência, de C.W. Leadbeater; Os Ideiais da Teosofia, O Mundo Futuro, Conferências Teosóficas eIntrodução ao Yoga, todos eles de Annie Besant. Estuda a Doutrina Secreta, Ísis sem Véu e os diversos escritos de H.P. Blavatsky.
Um dos livros traduzidos por Fernando Pessoa, como consta na capa do mesmo |
Conhece-se o efeito que as ditas obras e ideias produziram na sua alma, por uma carta que escrevera à sua alma gémea, Mário de Sá Carneiro: “Estremeceu-me a um ponto que eu considerava impossível, tratando-se de um sistema religioso. O carácter, extremamente vasto desta religião-filosofia, a ideia de força, de domínio, de conhecimento superior e sobre-humano que resumem as obras teosóficas pertubaram-me por completo. Algo similar me ocorreu, há já muito tempo com a leitura de um livro inglês sobre os Ritos e os Mistérios Rosa Cruzes. A possibilidade de que ali, na Teosofia, esteja a Verdade Real, atemoriza-me. Não me julgue no caminho da loucura. Creia de-veras que não o estou. Isto é uma crise grave de um espírito capaz de ter este tipo de crise. Se consideras que a Teosofia é um sistema ultra-cristão, no sentido de ter dentro de si os princípios cristãos mais elevados até um ponto onde se fundem em não sei que além-Deus e pensas no que há de fundamentalmente incompatível com o meu paganismo essencial, acharás o primeiro elemento grave que causou a minha crise. Se depois reparas que a Teosofia, já que admite todas as religiões, tem um carácter inteiramente parecido ao paga-nismo, que também admite no seu Panteão, acharás o segundo elemento da grave crise da alma de que padeço. A Teosofia causa-me pavor pelo seu mistério. E o horror e a atracção do abismo sentidos no mais profundo da alma. Um pavor metafísico, meu querido amigo”.
Tudo treme e range dentro e fora; a sua mãe, vítima de uma trombose fica hemiplégica. Pessoa encontra-se desesperado.
Este ano é também o ano dos dois números da revista Orpheu que, mesmo sendo um desastre económico, causou uma profunda comoção no meio.
Estátua de Fernando Pessoa no bairro do Chiado, em Lisboa |
Em 1916 inicia o livro “O regresso dos Deuses: Introdução geral ao neopaganismo português”, cuja autoria atribuirá ao heterónimo António Mora.
A porta do templo, a verdadeira porta do Templo achava-se aberta e a ofuscante e benéfica luz inundava com força a alma do poeta. O destino e os seus próprios méritos estavam selando a união com o seu Mestre sonhado. O que ocorreu? Ninguém o sabe e não aparece reflectido nos seus escritos do baú. Como ocorreu com Herman Hesse e também por estes mesmos anos, algo se quebrou. Ou foi a sua própria psique, não suficientemente afiançada, que se sentiu fascinada pelas luzes enganadoras da ilusão, pelos poderes psíquicos, pelo fenómeno médium, pelo uso lucrativo de ciências como a astrologia, pela prática de cerimónias proibidas. Foi quiçá a ingratidão e a injustiça que cometeu para com H.P. Blavatsky e a Teosofia, ao aceitar sem um juízo sereno todo o lixo que se verteu sobre aquela que tinha considerado sua Mestre? Ingratidão que abriu a porta do seu coração para que nele entrasse o veneno mortal. O certo é que neste período que vai de 1917 a 1919 a sua alma fica rompida, ferida e já não procurará nunca mais a união com o Eu divino, mas sim a inconsciência e o esquecimento. A sua alma submerge-se no ametafísico e o único que anseia é o descanso, o descanso da eterna obscuridade. Ainda assim continua fiel aos princípios e noções do que é o verdadeiro espírito da vida. Ele sabia, sabia e não se podia enganar a si mesmo. A única possibilidade era o descanso e ante o mundo, a ironia. Este “desassossego” que, desde muito jovem inundara a sua alma adquire agora uma dimensão fatal. E sem embargo, que alma a sua! Ainda rota, quando de novo se volta sobre si e recupera a sua natureza, que divinos acordes faz soar! Que divino, que imenso, que leccionista a sua dor! Os seus poemas, que são gritos da alma, quando não estão mascarados de algum dos seus heterónimos, chegam como setas rectas ao coração humano e ao coração divino, são uma oração permanente. E, ainda negando e relativizando tudo, continua a reconhecer que o homem que não crê, sentindo-lhe, em Deus, é um animal. Em momentos de verdadeira sinceridade, só ante a sua alma, reconhecerá ante o seu Mestre, ante o seu deus, que falhou e que lhe será necessário tentar de novo, noutra vida. Que comoventes, que terríveis este versos!
Mestre, meu mestre querido!
Coração do meu corpo intelectual e inteiro!
Vida da origem da minha inspiração!
Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?
Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem nada.
Alma abstracta e visual até aos ossos,
Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo,
Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,
Espírito humano da terra materna,
Flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva...
Mestre, meu mestre!
Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos
Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,
Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos,
Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!
Meu mestre e meu guia!
A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,
Seguro como um sol fazendo o seu dia invo-luntariamente,
Natural como um dia mostrando tudo,
Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.
Meu coração não aprendeu nada.
Meu coração não é nada,
Meu coração está perdido.
Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.
Que triste a grande hora alegre em que primero te ouvi!
Depois tudo é cansaço neste mundo onde se querem coisas,
Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,
Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.
Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento
Pela indiferença de toda a vila.
Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,
Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.
Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,
E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém
Depois, mas porque é que ensinaste a clareza de vista,
Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara?
Porque é que me chamaste para o alto dos montes
Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?
Porque é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela
Como quem está carregado de ouro num deserto.
Ou canta com voz divina entre ruínas?
Porque é que me acordaste para a sensação e a nova alma,
Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?
Coração do meu corpo intelectual e inteiro!
Vida da origem da minha inspiração!
Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?
Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem nada.
Alma abstracta e visual até aos ossos,
Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo,
Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,
Espírito humano da terra materna,
Flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva...
Mestre, meu mestre!
Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos
Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,
Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos,
Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!
Meu mestre e meu guia!
A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,
Seguro como um sol fazendo o seu dia invo-luntariamente,
Natural como um dia mostrando tudo,
Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.
Meu coração não aprendeu nada.
Meu coração não é nada,
Meu coração está perdido.
Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.
Que triste a grande hora alegre em que primero te ouvi!
Depois tudo é cansaço neste mundo onde se querem coisas,
Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,
Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.
Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento
Pela indiferença de toda a vila.
Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,
Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.
Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,
E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém
Depois, mas porque é que ensinaste a clareza de vista,
Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara?
Porque é que me chamaste para o alto dos montes
Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?
Porque é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela
Como quem está carregado de ouro num deserto.
Ou canta com voz divina entre ruínas?
Porque é que me acordaste para a sensação e a nova alma,
Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?
Momentos terríveis, vividos nestes anos. Em 1916, a sua alma gémea, Sá Carneiro sucumbe à tentação do suicídio e o nosso poeta fica sumido na mais profunda solidão. Choraria a sua morte com estes versos:
Não mais, não mais, e desde que saíste
Desta prisão fechada que é o mundo
Meu coração é inerte e infecundo
E o que sou é um sonho que está triste.
Desta prisão fechada que é o mundo
Meu coração é inerte e infecundo
E o que sou é um sonho que está triste.
O que ocorreu depois sabemo-lo, por uma carta que envia à sua tia Anica, que se achava também submergida nos estudos ocultistas. Pessoa afirma ter despertado uma visão etérica e astral, realizar fenómenos mediúnicos e de escrita automática. “A visão astral está muito imperfeita. Mas às vezes, de noite, fecho os olhos e há uma sucessão de pequenos quadros, muito rápidos, muito nítidos (tão nítidos como qualquer cousa do mundo exterior). Há figuras estranhas, desenhos sinais simbólicos, números (também já tenho visto números). (...) Além disso, já o próprio alvorecer dessas faculdades é acompanhado duma misteriosa sensação de isolamento e de abandono que enche de amargura até ao fundo da alma. Enfim, será o que tiver de ser”.
Empenha-se a fundo no estudo das ciências ocultas e vai entrando no Labirinto, no que o livro A Voz do Silênciochamou de “Segunda Sala”, a Sala da Aprendizagem onde a alma acha flores de vida, mas encontra, por detrás de cada flor, uma serpente escondida. O lugar de trânsito da alma onde não devemos procurar um Mestre de Enganos e onde devemos passar rápido e concentrado para não cair na fascinação das suas luzes enganadoras.
Carta astral de Fernando Pessoa, realizada por ele mesmo |
É tal a sua penetração e assimilação de ideias, que pode dominar os sistemas completos depois de meses de estudo e, assim, realiza estudos de Cabala, de Alquimia, Astrologia, Misticismo, Mitologia, Magia Cerimonial, Matemática e Geometria Sagrada, Simbologia, Hermetismo, Gnose, Maçonaria e Filosofia e Ritual dos Rosa Cruzes, convertendo-se num verdadeiro especialista de cada um dos temas.
Mas falta-lhe a condução do Mestre, o Fio de Ariadne que permita entrar e sair salvo deste Labirinto e que permita apressar a Alma e não só as formas destes Conhecimentos Sagrados. Que lhe permita não só saber, mas também poder dominar-se a si mesmo. Sem essa luz mística logo a atracção fatal por estas ciências pode converter-se em rejeição e inclusivamente em cepticismo.
Ouçamos a Pessoa, no seu Livro do Desassossego:
“Do estudo da metafísica, (...) passei a ocupações de espírito mais violentas para o equilíbrio dos meus nervos. Gastei apavoradas noites debruçado sobre volumes de místicos e de cabalistas, que nunca tinha paciência de ler de todo de outra maneira que não intermitentemente trémulo(...) Os ritos e as razões dos Rosa Cruz, a simbólica (...) da Cabala e dos Templários(...) sofri durante tempos a aproximação de tudo isso. E encheram a febre dos meus dias especulações venenosas, da razão demoníaca da metafísica -a magia (...), a alquimia - extraindo um falso estímulo vital da sensação dolorosa e presciente de estar como que sempre à beira de saber un mistério supremo”.
Num dos poemas rosa cruzes inéditos durante a sua vida - quer dizer, uma confissão da sua própria alma - expressa as condições que deve ter aquele que inicie este caminho invisível, e contraditoriamente, descreve também a situação em que se acha, perdido e sem rumo no labirinto; o Labirinto do Sala da Aprendizagem que estudamos no tratado místico A Voz do Silêncio. Que contradição entre o que sabe e sente dentro de si e a desorientação em que vive e caminha a sua alma! O poema está datado de 24 de Agosto de 1933 e elegemos estes dois fragmentos:
Capa do livro do desassossego |
Quantos, com longo estudo e fiel vontade,
Tentam pisar as sendas do Poder,
Sem que sintam uma única verdade,
Sem que o invocado espírito apareça,
Sem que o dominem, se é aparecido,
Sem que sintam, como eu, sobre a cabeça,
A coroa dos magos - ah, mas essa,
Se é de glória no nítido esplendor,
É de espinhos no intimo sentido.
Tentam pisar as sendas do Poder,
Sem que sintam uma única verdade,
Sem que o invocado espírito apareça,
Sem que o dominem, se é aparecido,
Sem que sintam, como eu, sobre a cabeça,
A coroa dos magos - ah, mas essa,
Se é de glória no nítido esplendor,
É de espinhos no intimo sentido.
E o segundo fragmento do mesmo poema:
Vi Anjos, toquei Anjos, mas não sei
Se Anjos existem. Tal me achei ao fim
D’esse caminho de que regressei
E vi que nunca sairei de mim.
Se Anjos existem. Tal me achei ao fim
D’esse caminho de que regressei
E vi que nunca sairei de mim.
Tão pouco sabemos, na terrível e densa obscuridade que cerca o Aspirante quando se fecha a porta do Templo, a que outros “Mestres”, fora do Templo, encontrou. Não eram evidentemente os bondosos e compassivos que aparecem nas cartas de H.P. Blavatsky. Outros... Tais se perfilam na sua carta de Pessoa à sua amada Ofélia, a quem depois de uns meses de relação sentimental escreve, rompendo com ela, em Novembro de 1920.
“O amor passou... O meu destino pertence a outra Lei, cuja existência a Ophelinha ignora, e está subordinado cada vez mais à obediência a Mestres que não permitem nem perdoam...”
Mago Aleister Crowley |
Em Dezembro de 1929, começa uma relação epistolar com o mago Aleister Crowley, chefe da Golden Dawn e depois da Fraternidade Mágica Thelema e conhecido nos meios ocultistas com o nome de “Mestre Therion”. Recebe dele um livro e Pessoa faz uma tradução para o português do seu Hino a Pan. Em Setembro de 1930 o mago visita Pessoa e protagoniza um escândalo na imprensa ao desaparecer nos Rochedos de Cascais.
Em Dezembro, e quiça fruto da relação com o mago, aparece na revista Presença um poema esotérico de Pessoa, intitulado “O Último Sortilégio”. Poema pavoroso, que reflecte o ânimo do poeta, que, “aprendiz de bruxo” penetrou no reino da magia cerimonial. Diz que, tendo feito outrora as evocações mágicas e sentindo-se irmanado com todos os poderes da natureza, agora se acha nu e só, sendo que a presença da luz celeste não inunda a sua alma e é, portanto, escravo de ditas forças que “à substância das coisas são iguais”. É também este poema uma oração para que, numa última magia - a da morte - o seu ser se dissipe inteiro e só permaneça a vontade que lhe criou, a Vontade de Deus e Mestre interior. Este é, talvez, um dos poemas mais serenamente desgarrados de Pessoa, em que se descreve a sua relação com o invisível.
Em Dezembro, e quiça fruto da relação com o mago, aparece na revista Presença um poema esotérico de Pessoa, intitulado “O Último Sortilégio”. Poema pavoroso, que reflecte o ânimo do poeta, que, “aprendiz de bruxo” penetrou no reino da magia cerimonial. Diz que, tendo feito outrora as evocações mágicas e sentindo-se irmanado com todos os poderes da natureza, agora se acha nu e só, sendo que a presença da luz celeste não inunda a sua alma e é, portanto, escravo de ditas forças que “à substância das coisas são iguais”. É também este poema uma oração para que, numa última magia - a da morte - o seu ser se dissipe inteiro e só permaneça a vontade que lhe criou, a Vontade de Deus e Mestre interior. Este é, talvez, um dos poemas mais serenamente desgarrados de Pessoa, em que se descreve a sua relação com o invisível.
O Último Sortilegio
Já repeti o antigo encantamento,
E a grande Deusa aos olhos se negou.
Já repeti, nas pausas do amplo vento,
As orações cuja alma é um ser fecundo.
Nada me o abismo deu ou o céu mostrou.
Só o vento volta onde estou toda e só,
E tudo dorme no confuso mundo.
E a grande Deusa aos olhos se negou.
Já repeti, nas pausas do amplo vento,
As orações cuja alma é um ser fecundo.
Nada me o abismo deu ou o céu mostrou.
Só o vento volta onde estou toda e só,
E tudo dorme no confuso mundo.
Outrora meu condão fadava as sarças
E a minha evocação do solo erguia
Presenças concentradas das que esparsas
Dormem nas formas naturais das coisas.
Outrora a minha voz acontecia.
Fadas e elfos, se eu chamasse, via,
E as folhas da floresta eram lustrosas.
E a minha evocação do solo erguia
Presenças concentradas das que esparsas
Dormem nas formas naturais das coisas.
Outrora a minha voz acontecia.
Fadas e elfos, se eu chamasse, via,
E as folhas da floresta eram lustrosas.
Minha varinha, com que da vontade
Falava às existências essenciais,
Já não conhece a minha realidade.
Já, se o círculo traço, não há nada.
Murmura o vento alheio extintos ais,
E ao luar que sobe além dos matagais
Não sou mais do que os bosques ou a estrada.
Já me falece o dom com que me amavam.
Já me não torno a forma e o fim da vida
A quantos que, buscando-os, me buscavam.
Já, praia, o mar dos braços não me inunda.
Nem já me vejo ao sol saudado erguida,
Ou, em êxtase mágico perdida,
Ao luar, à boca da caverna funda.
Falava às existências essenciais,
Já não conhece a minha realidade.
Já, se o círculo traço, não há nada.
Murmura o vento alheio extintos ais,
E ao luar que sobe além dos matagais
Não sou mais do que os bosques ou a estrada.
Já me falece o dom com que me amavam.
Já me não torno a forma e o fim da vida
A quantos que, buscando-os, me buscavam.
Já, praia, o mar dos braços não me inunda.
Nem já me vejo ao sol saudado erguida,
Ou, em êxtase mágico perdida,
Ao luar, à boca da caverna funda.
Já as sacras potências infernais,
Que, dormentes sem deuses nem destino,
À substância das coisas são iguais,
Não ouvem minha voz ou os nomes seus,
A música partiu-se do meu hino.
Já meu furor astral não é divino
Nem meu corpo pensado é já um deus.
E as longínquas deidades do atro poço,
Que tantas vezes, pálida, evoquei
Com a raiva de amar em alvoroço,
Inevocadas hoje ante mim estão.
Como, sem que as amasse, eu as chamei,
Agora, que não amo, as tenho, e sei
Que meu vendido ser consumirão.
Que, dormentes sem deuses nem destino,
À substância das coisas são iguais,
Não ouvem minha voz ou os nomes seus,
A música partiu-se do meu hino.
Já meu furor astral não é divino
Nem meu corpo pensado é já um deus.
E as longínquas deidades do atro poço,
Que tantas vezes, pálida, evoquei
Com a raiva de amar em alvoroço,
Inevocadas hoje ante mim estão.
Como, sem que as amasse, eu as chamei,
Agora, que não amo, as tenho, e sei
Que meu vendido ser consumirão.
Tu, porém, Sol, cujo ouro me foi presa,
Tu, Lua, cuja prata converti
Se já não podeis dar-me esta beleza
Que tantas vezes tive por querer,
Ao menos meu ser findo dividi -
Meu ser essencial se perca em si,
Só meu corpo sem mim fique alma e ser!
Converta-me a minha última magia
Numa estátua de mim em corpo vivo!
Morra quem sou, mas quem me fiz e havia,
Anónima presença que se beija,
Carne do meu abstrato amor cativo,
Seja a morte de mim em que revivo;
E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!
Tu, Lua, cuja prata converti
Se já não podeis dar-me esta beleza
Que tantas vezes tive por querer,
Ao menos meu ser findo dividi -
Meu ser essencial se perca em si,
Só meu corpo sem mim fique alma e ser!
Converta-me a minha última magia
Numa estátua de mim em corpo vivo!
Morra quem sou, mas quem me fiz e havia,
Anónima presença que se beija,
Carne do meu abstrato amor cativo,
Seja a morte de mim em que revivo;
E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!
De todas estas correntes mistéricas, depois da Teosofia, as que mais profunda pegada deixaram na alma foram as doutrinas rosa cruzes e o seu místico individualismo. E também como iniciação ao sagrado através da linguagem dos símbolos, as doutrinas maçónicas e a sua então ampla projecção pedagógica e social.
Cartaz com o 75º aniversário da publicação do poema e livro Mensagem |
É nos últimos anos, anos que podemos chamar de “nacionalismo mágico”, que se “inicia” na Ordem Templária de Portugal, moderna e emotiva mascarada da outrora viril e mística Ordem Templária. Em finais do ano de 1932 escreve um poema que evoca o cavaleiro monge, o templário que vive na sua alma. Redordações de uma vida anterior? Quem pode dizê-lo? Quando nas suas últimas horas de vida escreveu, em inglês: “I know not what tomorrow will bring” não sabia quiçá que a sua alma, libertada da prisão do seu corpo seguiria cavalgando, na noite, como fiel ca-valeiro do seu Senhor, mais além da luz da vida, mais além das sombras da morte.
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por casa, por prados,
Por quinta e por fonte,
Caminhais aliados.
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por penhascos pretos,
Atrás e defronte,
Caminhais secretos.
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por plainos desertos
Sem ter horizontes,
Caminhais libertos.
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por casa, por prados,
Por quinta e por fonte,
Caminhais aliados.
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por penhascos pretos,
Atrás e defronte,
Caminhais secretos.
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por plainos desertos
Sem ter horizontes,
Caminhais libertos.
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por ínvios caminhos,
Por rios sem ponte,
Caminhais sozinhos.
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por ínvios caminhos,
Por rios sem ponte,
Caminhais sozinhos.
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por quanto é sem fim,
Sem ninguém que o conte,
Caminhais em mim.
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por quanto é sem fim,
Sem ninguém que o conte,
Caminhais em mim.
Procurando talvez Aquele que o consagrou, em honra e em desgraça, seguindo aquela luz daquela espada no alto, que antes dera, no juramento, na sua face calma.
Lápide com inscrição e máxima de Fernando Pessoa: "Minha Pátria é a Língua Portuguesa" |
José Carlos FernándezDirector Nacional da Nova Acrópole
Referencia:
http://nova-acropole.pt/a_esoterismo-pessoa.html
SEGUNDA PARTE
Fernando Pessoa, ocultista e astrólogo – Por Vitor Manuel Adrião
Fernando Pessoa, “blagueur” sobretudo de si mesmo, com a mesma blague re-velava a compostura discreta do que vive plena e intensamente uma disciplina interior, esotérica. Tal Esoterismo ficou reflectido na sua vasta obra literária disposta acima, muito acima de catalogações discursivas em dialécticas complicadas do que afinal é simples e só. Também há que o aperceba parcialmente simpatizante destas ou aquelas ciências ocultistas e assim pretendem-no, conforme as crenças postuladas, militante das respectivas organizações: ou espírita ou teosofista, ou maçom ou rosacruciano, ou isto ou aquilo… Filosofando a incongruência, poderei dizer que ele foi tudo isso e nada disso, mas sobretudo o Iniciado Real que como Livre-Pensador naturalmente dispunha-se além das afiliações humanas em quaisquer sociedades esotéricas, mesmo simpatizando com os postulados filosóficos das doutrinas de algumas delas.
Acerca do Espiritismo, é claríssima a sua posição em Hyram[1] quanto aos seus inconvenientes:
“Para as entidades que comunicam: intensificação das suas paixões e desejos inferiores pelo facto de voltarem a sua atenção para a vida terrestre, atraso na sua evolução espiritual, e muitas vezes o doloroso despertar de lindos sonhos em que a entidade está mergulhada. Para o médium e circunstantes: diminuição da vitalidade, desorganização orgânica, perturbações no funcionamento do sistema nervoso cardiovascular, nas funções psíquicas e finalmente a loucura.”
Essa é exactamente a mesmíssima opinião de Helena Petrovna Blavatsky, fundadora da Sociedade Teosófica em 7 de Setembro de 1875 em Nova Iorque, América do Norte. Sobre a Teosofia, Fernando Pessoa admirava-a “pelo seu mistério e grandeza ocultista”, porém repudiava o seu lado moralista e conservador cujo puritanismo mostrava-se opositor de um mais amplo desenvolvimento mental, factor psicológico imposto no seio dessa Sociedade pós-Blavatsky pelo ex-sacerdote anglicano Charles Leadbeater.
Apesar de em 1935 ter defendido publicamente a Maçonaria (decerto exclusivamente pela sua vertente Tradicional e Iniciática, como o próprio revela)[2], quando foi aprovado o projecto-lei contra as Associações Secretas da autoria do deputado José Cabral, não deixou de escrever em Hyram: “Não sou mação nem pertenço a qualquer outra Ordem Maçónica”. Em carta a Casais Monteiro, volta a reiterar não pertencer a qualquer instituição esotérica[3].
De maneira que parece cair em “saco roto” a afirmação corrente de “Fernando Pessoa ter sido iniciado no rito inglês do Royal Arch”, pois o mais podendo dizer-se é que compreendia o sentido secreto e iniciático da Maçonaria e da sua importância na evolução mental e moral da Sociedade Humana, quase de certeza sendo essa a razão de tê-la defendido magistralmente como é do conhecimento geral.
A única filiação estabelecida por Fernando Pessoa nos anos 20 do século passado foi ao movimento mágico/rosacruciano/maçonista Golden Dawn[4], sediado em Londres, no qual terá realizado os seus graus esotéricos para em seguida se afastar, tanto por incompatibilidade mental como por espírito de independência. Realmente, Pessoa não era gente de agrupamentos e multidões. Todavia, apercebe-se a influência da doutrina da Golden Dawn na sua transposição ao Esoterismo Português, sobretudo nos seus espantosos ensaios O Caminho da Serpente e Iniciação, mais que nos outros afins à mesma temática[5].
Fernando Pessoa também foi um experiente astrólogo tendo chegado a tentar estabelecer-se como tal com o sub-heterónimo Raphael Baldaya, com consultório em Lisboa, experiência que fracassou ao fim de pouco tempo, e pelas centenas de cartas astrológicas que fez repara-se ter sido o primeiro a introduzir o planeta Plutão na Astrologia[6], tema a que voltarei mais adiante.
Raphael Baldaya, Astrólogo, anúncio feito por Fernando Pessoa |
Peremptório na negação a filiação convencional a quaisquer organizações ocultistas, com tudo o poeta não deixava de reconhecer o grande proveito humano da fina essência de algumas delas, caso da Teosofia como Linha Oriental e da Maçonaria, como Linha Ocidental. Se houve alguma afiliação secreta além da esporádica à Golden Dawn, e ele deixa transparecer que sim, só poderá ter sido a essa secretíssima Confraternidade de Encapuçados operando no solo nacional sob o nome praticamente desconhecido Ordem de Mariz cujos preclaros Membros, diz a Tradição Iniciática, vinculam-se ao “Culto de Melkitsedek” (vd. Génesis, 14-18; Salmos, 110-4; Hebreus, 7-1 a 4) e possuíam a sua sede exotérica em Coimbra e a esotérica em Sintra. Com a mesma terá a ver o seu Tratado da Ordem do Sub-Solo, onde “está o Governo Supremo e Secreto da Maçonaria”[7], ou seja, a Maçonaria Universal Construtiva dos Três Mundos encravada no próprio seio da Terra, celebrizada no Oriente como a dos Traichus-Marutas sob a chefia do próprio Brahmatmã ou Rei do Mundo (Melkitsedek, no judaico-cristianismo), o Soberano Universal. Estará nisso o sentido último do seu poema Emissário de um rei desconhecido, escrito entre 1913 e 1916 como Soneto XIII – Passos da Cruz: “Emissário de um rei desconhecido, / Eu cumpro informe instruções de além, / […] sinto-me altas tradições”.
O Ocultismo também se manifesta nos heterónimos de Fernando Pessoa[8], posto por eles os expor veladamente em “os três caminhos para o Oculto” (em carta a Casais Monteiro) e que são “o Mágico, o Místico e Alquímico”. Nessa apreensão, pode dispor-se o heterónimo Ricardo Reis na Via Mágica ou Física, a mesma Karma-Marga que na Idade Média os travadores retratavam nas Cantigas de Amigo, sendo esse o heterónimo que mais tempo durou na vida do poeta, tanto quanto a influência da Magia. O seguinte, Álvaro de Campos, estará em conexão com o Caminho Místico, Emocional ou Bhakti-Marga, retratado nas antigas Cantigas de Amor, e finalmente Alberto Caeiro, o Mestre de todos, o “Outro”, afim à Via Filosofal ou Alquímica como Realização Mental ou Espiritual, Jnana-Marga, cantada nas Cantigas de Santa Maria. Na carta a Casais Monteiro, assim define Fernando Pessoa o Caminho da Alquimia: “E o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeito de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os outros não têm”.
Dessa maneira, reunindo e alinhando potencial e patente os três princípios Corpo, Alma e Espírito, Fernando Pessoa assume-se verdadeiro Iniciado cujos segredos d´Arte bem soube ocultar na sua Obra. Não esqueço ainda o heterónimo António Mora. Para Fernando Pessoa representava o super-pagão, o psíquico, a sua íntima fase «mediúnica» ou mediadora, que melhor ficaria como adjectivo. Daí ser pouco referido na sua Obra, tratando-se de um aspecto pessoal interiorizado que o impulsionaria aos mistérios abscônditos do Paganismo (interpretado como ante e além Cristianismo, ou seja, o Mistério Original), por ele temido por respeito e admiração, e pelo desassossego íntimo causado ao levantar o Véu de Ísis, a Sabedoria Primordial. Com tudo, assumindo a genialidade de Homem Superior (Jivatmã), arremeda o vaticínio no seu Ultimatum por Álvaro de Campos[9]:
“Proclamo a vinda de uma Humanidade matemática e perfeita!
“O Super-Homem será, não o mais forte, mas o mais completo.
“O Super-Homem será, não o mais duro, mas o mais complexo.
“O Super-Homem será, não o mais livre, mas o mais harmonioso.
“Proclamo isto bem alto e bem no auge, na barra do Tejo, de costas para a Europa, braços erguidos, fitando o Atlântico e saudando abstratamente o infinito.”
Portanto, defronte para o novo continente, para o Brasil que não é Português mas Portugal, derradeiro repositório das esperanças da Humanidade que um dia também será o “Super-Homem”, isto é, o Homem que, mercê do desenrolar evolucional dos ciclos que regem a Vida Universal, se transformou em Ser Perfeito na transformação da Vida-Energia (Jiva) em Vida-Consciência (Jivatmã). Esse destino último do Brasil é o próprio Fernando Pessoa a apontá-lo em texto precioso no seu espólio recolhido por Gustavo Morais:
“Em primeiro logar, e como já o notou João de Castro Osório, Portugal não é propriamente um paiz europeu: mais rigorosamente se lhe poderá chamar um paiz atlântico – o paiz atlântico por excellencia. (…) Além d´isso, Portugal, neste caso, quere dizer o Brasil tambem. Como o [V] Imperio, neste schema, é espiritual, não ha mister que seja imposto ou construido por uma só nação: pode se-lo por mais que uma, desde que espiritualmente sejam a mesma, que o são se falarem a mesma lingua.”[10]
Para arredar definitivamente qualquer imputação sócio-política à sua ideia sinárquica de V Império da Humanidade, Fernando Pessoa adianta ainda: “Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa”[11].
No seu poema S. João, datado de 9 de Junho de 1935, publicado por Yvette Kace Centeno[12], Fernando Pessoa dá a entender o seu estatuto iniciático: “Se és maçom, sou mais do que maçom – eu sou templário”, condição reiterada no seu “bilhete de identidade” escrito por ele próprio nesse mesmo ano final de sua vida, documento que pela importância maior ao entendimento real da personalidade esfíngica do poeta e vate, transcrevo in littera as partes consideradas atinentes ao assunto em pauta, o de Fernando Pessoa como Ocultista.
“BILHETE DE IDENTIDADE” DE FERNANDO PESSOA ESCRITO PELO PRÓPRIO
Ganhou o prémio Rainha Victória de estylo inglez na Universidade do Cabo da Boa Esperança em 1903, no exame de admissão, aos 15 anos.
IDEOLOGIA POLÍTICA: Considera que o systema monarchico seria o mais próprio para uma nação organicamente imperial como é Portugal. Considera, ao mesmo tempo, a Monarchia completamente inviável em Portugal. Por isso, a haver um plebizcito entre regimens, votaria, embora com pena, pela Republica. Conservador do estylo inglez, isto é, liberal dentro do conservantismo, e absolutamente anti-reaccionario.
POSIÇÃO RELIGIOSA: Christão gnostico, e portanto inteiramente opposto a todas as Egrejas organizadas, e sobretudo à Egreja de Roma. Fiel, por motivos que mais adeante estão implicitos, à Tradição Secreta do Christianismo, que tem intimas relações com a Tradição Secreta de Israel (a Santa Kaballah) e com a essencia oculta da Maçonaria.
POSIÇÃO INICIATICA: Iniciado, por comunicação directa de Mestre a Discípulo, nos trez graus menores da (aparentemente extincta) Ordem Templaria de Portugal.
POSIÇÃO PATRIOTICA: Partidario de um nacionalismo mystico, de onde seja abolida toda infiltração catholica-romana, creando-se, se possivel for, um sebastianismo novo, que a substitua espiritualmente, se é que no catholicismo portuguez houve alguma vez espiritualidade. Nacionalista que se guia por este lemma: “Tudo pela Humanidade; nada contra a Nação”.
POSIÇÃO SOCIAL: Anti-communista e anti-socialista. O mais deduz-se do que vae dito acima.
RESUMO DE ESTAS ULTIMAS CONSIDERAÇÕES: Ter sempre na memoria o martyr Jacques de Molay, Grão-Mestre dos Templários, e combater, sempre e em toda a parte, os seus trez assassinos – a Ignorancia, o Fanatismo e a Tyrannia.
Lisboa, 30 de Março de 1935
Fernando Pessoa
Retenho três aspectos do posicionamento de Fernando Pessoa, um temporal, outro psíquico e um espiritual. O primeiro tem a ver com o seu “anti-comunismo e anti-socialismo”, certamente o sendo por o comunismo ser ateu e o socialismo laico, nisso indo contra a sua noção de “nacionalismo místico” por que entendia Portugal e o então Império, opondo-se que fossem os mais incapazes a governar os mais capacitados por isso ser uma inversão dos valores naturais afins à maior consciência alcançada, posto a força mental sobressair e dominar a força braçal. O segundo aspecto é o da sua hostilidade aparente ao catolicismo romano, por em seu tempo e desde há séculos andar ligado ao poder político de maneira a mais facilmente conseguir reprimir junto do povo quaisquer inovações criativas marginais aos limites estreitos da ortodoxia religiosa, assim transformada em política social da Igreja até hoje dominando ou tentando dominar através dos chamados partidos políticos de direita. Por fim, o terceiro aspecto: a Iniciação directa de Fernando Pessoa de Mestre a Discípulo revelou-se “através da sua janela”, isto é, da sua alma em comunicação directa com o Plano imediato ao Físico, como seja o Astral. Tratou-se de uma Iniciação Interna, Psicomental, onde o “Outro”, o Eu Superior, se manifestou ao extasiado Pessoa. Razão de afirmar-se “templário” de uma “Ordem aparentemente extinta”, que é dizer, ocultada nos Planos da Alma.
Ciente da sua missão sebástica através das Letras por a “Alma Lusitana estar grávida de Divino”[13], Fernando Pessoa faz apelo à derradeira Demanda do Santo Graal assim preconizando o retorno às origens, à interioridade, ao arquétipo primordial da Nação no qual se regista o seu destino último visto ou intuído por quantos viram à mesma Luz e a glosaram em frases proféticas na mais genuína manifestação bandárrica.
“Bandarra é um nome colectivo, pelo qual se designa, não só o vidente de Trancoso, mas todos quantos viram, por seu exemplo, à mesma luz.”[14]
Diz mais ainda Fernando Pessoa no seu Tratado da Ordem do Sub-Solo: “O nome Bandarra que é de facto o apelido do sapateiro profeta, passou a designar, dentro da Ordem de Cristo, qualquer dos Irmãos que assumiram a mesma luz, ou, falando figurativamente, o mesmo grau”.
Foi este Fernando Pessoa “Bandarra” quem predisse no seu “Horóscopo de Portugal”[15]o adormecimento ou pralaya do País entre 1877 e 1978, daqui em diante despertando para os seus reais valores latentes capazes de o levarem a realizar a sua Missão Avatárica ou Messiânica de Quinto Império da Humanidade encabeçada pelo Menino-Messias, que tanto poderá ser um Movimento Espiritual como o seu Líder ou Guia.
Horóscopo de Portugal feito por Fernando Pessoa
Seja de que maneira for, uma só certeza resta ao poeta vate, por certo a maior de todas:
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois, venha o que vier, nunca será
curiosidade:
Baú com cerca de 27.000 manuscritos, onde Fernando Pessoa guardava tudo o que escrevia:
CONTEÚDO COMPLETO:
https://lusophia.wordpress.com/2016/01/01/fernando-pessoa-ocultista-e-astrologo-por-vitor-manuel-adriao/
NOTAS
[1] Fernando Pessoa, Hyram. Filosofia Religiosa e Ciências Ocultas. Notas e Postfácio de Petrus. “Tendências”, C.E.P., Porto (s/d).
[2] Fernando Pessoa, Associações secretas. Jornal Diário de Notícias, n.º 4388 de 4 de Fevereiro de 1935.
[3] João Gaspar Simões, Vida e Obra de Fernando Pessoa (História de uma Geração). Livraria Bertrand, SARL – Lisboa, 1980.
[4] Israel Regardie, A Golden Dawn – A Aurora Dourada. Madras Editora, São Paulo, 2008.
[5] Yvette Centeno, Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética. Editorial Presença, Lisboa, 1985.
[6] No espólio de Fernando Pessoa encontra-se um seu Tratado de Astrologia assinado com o sub-heterónimo Raphael Baldaya.
[7] Fernando Pessoa, Tratado Ordem do Sub-Solo. Textos recolhidos e coligidos por Yvette Centeno, ob cit.
[8] Obra em Prosa de Fernando Pessoa, Textos de Intervenção Social e Cultural (A Ficção dos Heterónimos). Introdução, organização e notas de António Quadros. Publicações Europa-América, Lda., Mem Martins, 1986.
[9] Fernando Pessoa, Portugal Futurista, n.º 1, Lisboa, 1917.
[10] Fernando Pessoa, Um Paiz Atlântico, s/d, doc. 125A – 43.
[11] Texto originalmente publicado em Descobrimento, revista de Cultura n.º 3, pp. 409-410, 1931, transcrito do Livro do Desassossego de Bernardo Soares (Fernando Pessoa).
[12] Yvette K. Centeno, Fernando Pessoa: Magia e Fantasia. Edições Asa, Porto, 2003.
[13] Fernando Pessoa, Sobre Portugal – Introdução ao Problema Nacional. Edições Ática, Lisboa, 1979.
[14] Fernando Pessoa, Prefácio à obra de Augusto Ferreira Gomes, O Quinto Império. Edição António Maria Pereira, Lisboa, 1934.
[15] Portugal – Pessoa responde ao inquérito “Portugal, Vasto Império”. Primeira publicação em O Jornal do Comércio e das Colónias, 73.º ano, n.º 21693, Lisboa, 28-5-1926. Segunda publicação por Augusto da Costa em Portugal, Vasto Império. Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1934.
[18] Fernando Pessoa, poema para ser publicado no Orpheu n.º 3, Lisboa, 1916, não o tendo sido e inserido na Mensagem com o título D. Fernando.
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