Como
filosofar com o martelo:
uma viagem em companhia de Friedrich Nietzsche
Um
relato de Dorothee Rüdiger
Permita-me,
caro leitor, seduzi-lo para uma viagem à Alemanha em companhia de um homem nada
comum, um “espírito livre” , como ele mesmo preferia se designar. Nosso
companheiro de viagem é o filósofo Friedrich Nietzsche que nasceu na
cidade de Röcken, perto de Leipzig, na casa de uma família de pastores
protestantes e morreu, mergulhado no delírio, em Weimar, no ano de
1900. Vale a pena viajarmos em tão ilustre companhia, porque Friedrich
Nietzsche é o filósofo que inaugurou o pensamento pós-moderno.
Como é
um tanto arriscado o viajante perder-se nos bosques da Alemanha e nas ideias de
um dos seus pensadores mais ilustre, seguimos o mapa que Luc Ferry, em
sua obra Aprender a viver, nos oferece para chegarmos, com alguma
segurança a nosso destino, à contemporaneidade.
Ponto
de partida: As construções da modernidade
Para
saber o que, afinal, Friedrich Nietzsche quer desconstruir com sua filosofia
do martelo, denominada, assim, em sua obra Crepúsculo dos ídolos,
precisamos saber que os pensadores modernos comparam frequentemente suas
teorias com uma “construção”.
Teorias
se constroem. A cidadania e o Estado são edifícios. Assim diz, por exemplo, o
preâmbulo da United State Bill of Rights, do ano de 1789, uma
das pedras angulares da Constituição dos Estado Unidos. Com essas
construções, os filósofos da modernidade reedificaram o mundo em meio à
revolução científica ocorrida desde Nicolau Copérnico até Isaac Newton,
revolução essa que tirou o mundo de sua ordem estabelecida. Ao invés da
harmonia natural do cosmos dos antigos, ou da ordem divina do cristianismo,
reina, a partir das descobertas da astronomia e da física, o caos. Precursor
dessa revolução da ciência é o grande cisma da Igreja Católica provocado pelo
protestantismo. Como cada um pode seguir livremente sua fé, pode
investigar o mundo sem se preocupar com a doutrina da Igreja. Mas, em que se
apoiar, quando não na fé?
Nesse
mundo do caos, a filosofia moderna procura uma nova teoria, uma nova forma de
“contemplar a natureza”, no método científico. Esse método deve ser
capaz de investigar os problemas, realizar juízos sintéticos, como
diria Immanuel Kant, juntando as causas dos problemas com seus efeitos. Esses
juízos só são possíveis se o cientista fizer uso da razão, isto é, não se
deixar levar pelos seus sentimentos. Assim, encontrará a verdade
científica.
No
plano da moral, o caos político instalado na modernidade, principalmente na
luta entre a aristocracia e a burguesia e entre os nascentes Estados Nacionais
também requer uma nova ordem. Por isso, os modernos constroem uma moral que não
tem mais uma referência no cosmos ou na ordem religiosa, mas no próprio
homem e sua liberdade. O humanismo torna-se a pedra angular da construção
dos direitos humanos universalmente válidos, já que todo homem é dotado
de razão e, portanto, do livre arbítrio.
Como,
na modernidade, a teoria e a moral estão permanentemente em construção, a
sabedoria, ou seja, a arte de viver (e morrer) dedica-se às grandes
causas. A ciência, a política e o direito têm grandes projetos para
o futuro a ser construído: o conhecimento universal, a grandeza da Nação ou,
ainda, o comunismo, dentre outros. São projetos para os quais vale a pena
morrer, como na antiguidade se morria para ter seu lugar no cosmos ou, na era
cristã, ter seu lugar na Cidade de Deus, conquistado pela fé e pela
caridade. Friedrich Nietzsche diz que a filosofia moderna criou uma religião
sem deuses que, tal como as construções da ciência e da moral
democrática deverá sofrer suas marteladas.
Primeira
parada: Nietzsche no canteiro da desconstrução
Friedrich
Nietzsche é implacável contra Deus e o mundo. Despeja sua ira contra os
republicanos que permanecem crentes de algum valor superior à vida, e os
filósofos iluministas que ainda são prisioneiros da religião. Ao invés de Deus,
veneram falsos deuses, os ídolos. Estes estão na mira da filosofia
do martelo. Por que essa radicalidade do ataque que não poupa nem cientistas,
nem filósofos, nem juristas e nem políticos? Todos têm em
comum de não aceitarem “a vida como ela é”. Sua transcendência, seus
juízos da verdade e seus valores morais nada mais são do que sintomas
da vida. São niilistas, porque negam a vida.
Como o
leitor pode perceber, Friedrich Nietzsche retoma radicalmente o espírito
crítico dos modernos que não mais acreditavam num mundo proposto pela fé cristã
e partiram para a dúvida e para a investigação. Mas, ao invés de
construir um novo cosmos, uma nova religião e uma nova
filosofia da salvação, Nietzsche prefere criticar a busca da verdade, as
grandes causas e declarar que “Deus está morto!”
Feito
isso, Nietzsche abre um espaço para o nascimento do novo, da sociedade
pós-moderna. Ele é mais radical que os filósofos do iluminismo. Vai além da
teoria e inventa o Alegre saber, vai Além do bem o do mal para
inventar o agir em grande estilo e vai além dos projetos de
salvação para propor o amor do tempo presente.
Segunda
parada: além da teoria, o alegre saber sobre as forças da vida
Friedrich
Nietzsche nos convida para enxergarmos por detrás da fachada das construções
teóricas. Não há como contemplar o cosmos pela teoria, não há ponto de vista
superior à vida a partir do qual poderíamos ver e entender a vida. Há, sim,
forças vitais que nos habitam, produtos da vida. Só podemos perceber a vida, se
encararmos que “o real é um caos”, que “o mundo é um monstro de forças”, um “mar
tempestuoso”. Mas, será que Nietzsche nos leva ao fim do mundo, a um
buraco da existência? De maneira alguma! Mesmo não reconstruindo nem o
cosmos, nem a ordem divina e nem o universo, reconstruído pela ciência, há como
tocar esse real, habitado pelas forças reativas e pelas forças
ativas.
As forças
reativas, presentes na vontade de conhecer a verdade, da
filosofia clássica à ciência moderna, negam o mundo sensível porque “ só podem
se expandir no mundo e produzir todos os seus efeitos, reprimindo, aniquilando
e mutilando outras forças, ”[1] isto
é, as forças ativas. Nietzsche dedica parte da sua obra O
crepúsculo dos ídolos à crítica de Sócrates e de sua verdadeira
demagogia contra os praticantes da retórica. Quando Sócrates usa seu método, a
maiêutica, a arte de parir ideias, coloca-se na posição de quem já possui
ideias mais acertadas e só precisa extrair, de seus discípulos, um conhecimento
que se sustenta por uma construção coerente. Os pensamentos de Sócrates são
tidos como verdadeiros porque Sócrates literalmente convence. Ele sabe o que
está certo ou errado. Sócrates constrói um mundo inteligível e lógico, em
detrimento do mundo sensível. Desvaloriza o corpo, “reage” contra o corpo e as
emoções que os retóricos sabem tocar tão bem. “O que não está nos autos,
não está no mundo” dizem, até hoje, os juristas de tradição socrática, para
abstrair o processo da vida real que não cabe no papel!
Ora,
esconder-se atrás da máscara da lógica, das leis universais da matemática e da
ficção da democracia, como Sócrates o faz, é para Nietzsche coisa de
“populacho” que leva vantagem, quando crê ter encontrado nessas verdades
universais o pulo do gato para uma vida sem sustos.
As forças
ativas, ao contrário das forças reativas, afirmam a vida e a
sensibilidade do corpo pela arte e por uma visão aristocrática do mundo.
As forças ativas valorizam o corpo e a sensibilidade, são
leves, são alegres, porque, afinal, “gosto não se discute”. Os artistas, diz
Nietzsche, podem descobrir novos mundos que se abrem sem necessidade de
legitimação. O artista é o verdadeiro aristocrata: não dá explicações, mostra!
Podemos gostar da música de Bach, Mozart, Roberto Carlos e Adele ao mesmo
tempo, porque não há verdade na música. A arte não procura convencer, procura
seduzir, provocar efeitos no corpo, tal qual a retórica, “a palavra que toca”.
E, como
é capaz de tocar, ela não pode ser resumida. A verdade, essa sim, pode ser
resumida. Sócrates, em seu combate aos retóricos, pede a estes um resumo
de sua fala. É impossível resumir a retórica, como é impossível resumir uma
poesia. No jogo de palavras da filosofia socrática, perde-se a beleza, perde-se
o essencial, a vida. O artista é capaz de perceber as forças ativas da
vida. Ele as “escuta”,[2]
enquanto os que se dedicam às forças reativas não as
conhecem. Vivem em confronto com essas forças, o que lhes tira a alegria
da vida. Gozam de uma vida menos pujante, menos poderosa.
No
entanto, abrirmos mão das forças reativas seria uma tolice.
Para Nietzsche, as forças reativas fazem parte do real.
Sua filosofia não tem nada a ver com o anarquismo e a libertação sexual, como
fazem crer seus seguidores, em maio de 1968. Para orientar a vida na prática, o
filósofo alemão preconiza a conciliação entre as duas forças, o grande
estilo.
Terceira
parada: para além do bem e do mal, o grande estilo
Chegamos
à desconstrução da moral e, mais uma vez, às temidas marteladas de Nietzsche,
com as quais combate tanto o ideal cristão, quanto o humanismo dos modernos.
Ele abomina a compaixão. Compaixão é para os fracos. Por sua falta de
compaixão, Nietzsche é evocado pelos nazistas que usaram sua filosofia para
fundamentar sua teoria racista dos Herrenmenschen (homens-senhores)
germânicos, superiores aos que nasceram para serem escravos, ou seja, os
não-germânicos. Nietzsche chega a comentar a satisfação que sente diante dos
mortos de um grande desastre natural. Será que é mesmo o Anticristo?
Vendo
suas desconstruções mais de perto, Nietzsche é crítico da moral cristã e,
também, do humanismo, porque “se a vida é apenas um tecido de forças cegas e
dilaceradas, se nossos juízos de valor são apenas emanações mais o menos
decadentes, .... de que adianta esperar de Nietzsche a menor consideração
ética?”[3]Não há moral, mas há
estilo para superar as forças que nos dividem, que nos rasgam por dentro.
Mais
uma vez, é o artista que é capaz de conciliar as forças da vida, tanto as
reativas, quanto as ativas. Ele sabe que com sua disciplina e com sua criação,
abriga as duas forças na arte. Essa conciliação leva o um novo ideal, a
da harmonização das forças vitais.
Como
exemplo dessa harmonia, podemos citar, no Brasil, a escola de
samba. Só com a disciplina quase militar, ela consegue colocar seus
blocos, sua bateria e seus carros alegóricos na avenida para criar uma arte
que, a cada ano, é capaz de emocionar o público. Grandes escolas têm um grande
estilo, porque conseguem harmonizar e hierarquizar as forças vitais. Quando
conseguem mostrar sua elegância na avenida, o “poder desabrocha”, a vida deixa
de ser diminuída. Quem já participou de um desfile de uma grande escola de
samba sabe que, durante o desfile, a vida fica mais intensa, mais harmoniosa,
porque as forças vitais cooperam, não se chocam, não se combatem.
Citei o
exemplo da escola de samba como grande estilo para dizer com
Friedrich Nietzsche, que a vontade de poder, a vontade de viver uma
vida emocionante, mais elevada, não tem nada em comum com a vontade de
políticos nazistas ambiciosos dominarem o mundo. É o artista quem
pode “tornar-se senhor do caos interior em forçar seu próprio caos a assumir
forma”[4]. Nada
melhor do que uma escola de samba desfilando em pleno carnaval para
testemunhar isso!
Chegada:
o amor ao tempo presente
O que
vai dizer nosso companheiro de viagem a respeito da salvação, da arte de
superar o fato da morte? Obviamente, não há, para Friedrich Nietzsche uma
salvação no paraíso, no nirvana, em Deus ou em um de seus substitutos.
Podemos
viver o que chama de eterno retorno. Este, evidentemente, não é
para Nietzsche uma reencarnação, mas sim como um exercício de decisão : “O que
vale ser vivido e o que não vale a pena?” Eis a questão! Precisamos, diz
Nietzsche, reavaliar constantemente, nossas vidas. O que quero viver, o que
quero repetir, o que não? A escolha é sempre minha! Por isso, posso
amar o tempo presente, a vida como ela é, sem fugir para a nostalgia do passado
ou para os projetos do futuro. Quem exerce o amor ao tempo presente, sem, no
entanto acreditar na salvação a porvir, vive em grande estilo, ou,
se preferir, com as palavras de Jorge Forbes, uma “vida qualificada”.
Chegamos
à psicanálise. Passamos com Friedrich Nietzsche pela desconfiança de que por
detrás das construções racionalistas há um real que habita nosso inconsciente.
Conhecemos as forças reativas do mundo simbólico e as forças
ativas das sensações do nosso corpo. Sabemos, agora, porque
Sigmund Freud pode dizer que “não somos os donos em nossa própria casa da
razão”. Talvez, nós psicanalistas sejamos como os artistas a escutarem as
pulsões que vivem em confronto e que tiram a alegria da vida de nossos
pacientes que buscam outra vida. Porque não dizer que procuramos, no divã,
deixar uma vida mesquinha para trás a favor de uma vida aristocrática,
em grande estilo. Na psicanálise, aprendemos a tomar decisões e,
principalmente, a desfrutar a vida única que temos.
Só me
resta dizer um dankeschön, Herr Nietzsche, por nos mostrar os
tesouros que só aparecem por debaixo das ruínas.
desejo felicidadeS🙈🙉🙊
'MEMENTO MORI'💀
Daniel Bastos
[1] FERRY, Luc. Apender a
viver: filosofia para os novos tempos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010, p. 201
[2] Ibidem, p. 211
[3] Ibidem, p. 214.
[4] Ibidem, p. 218
http://jorgeforbes.com.br/br/projeto-analise/como-filosofar-com-o-martelo.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário