Kierkegaard e Nietzsche: breves considerações sobre Cristianismo e existência
Introdução:
Qualquer pessoa que já tenha adentrado a uma sala de aula de um curso de humanas, ou mesmo participado de discussões informais no campo da ética, certamente, já se deparou com severas críticas ao Cristianismo – ou àquilo que, comumente, é chamado de moral judaico-cristã. Apesar disso, o que, de maneira geral, se percebe nesses discursos é menos um olhar atento e cuidadoso sobre o complexo quadro da religião cristã, com suas multifacetadas nuances, do que um pathos reativo – quase sempre dogmático – que acaba por circunscrever a discussão a limites bastante reduzidos.
A proposta dessa breve reflexão, portanto, será abordar o Cristianismo a partir do pensamento de dois importantes filósofos que, ao longo de suas obras, dispensaram especial atenção ao tema: o dinamarquês Søren Kierkegaard e o alemão Friedrich Nietzsche. Para isso, será feita, inicialmente, uma apresentação panorâmica de cada autor, procurando-se salientar a relação de cada um com a religião cristã; em seguida, um diálogo entre suas principais ideias, bem como análise de seus pressupostos; e, por fim, uma conclusão crítica, onde se buscará analisar até que ponto os autores lograram – ou não – êxito em seus projetos filosóficos.
A mosca varejeira de Copenhagen:
“O presente autor de nenhum modo é um filósofo” (KIERKEGAARD, 1979, p. 110) [1]. A irônica frase de Johannes de Silentio – heterônimo de Kierkegaard em seu belíssimo Temor e Tremor– revela bastante do pensamento do dinamarquês e, especialmente, do contexto histórico-filosófico no qual está inserido.
Obviamente, a filosofia a que Johannes de Silentio se refere quando nega ser um filósofo não é qualquer filosofia, mas um tipo específico: aquela que se constrói nos moldes da sistematização da filosofia moderna. “Kierkegaard tinha uma aversão por todo tratamento sistemático de temas teológicos ou filosóficos e desdenhava todas as tentativas de formar um ‘sistema’ fechado, completo e auto-contido (GOUVÊA, 2006, p. 21) [2]. Para ele, Hegel – ícone da modernidade a quem dirige boa parte de suas críticas – podia até interpretar a vida; o problema, no entanto, seria vivê-la (Cf.Ibidem, p. 44). Sobre isso, ainda com a ironia que lhe é peculiar, Kierkegaard comenta o seguinte:
“Um pensador ergue um grande edifício, um sistema, um sistema que abrange o todo da existência, história do mundo, etc., e se sua vida pessoal é considerada, para nosso espanto faz-se a descoberta assustadora e burlesca de que ele mesmo não vive pessoalmente neste grande e abobodado palácio, mas numa cabana ao lado, ou numa casa de cachorro, ou na melhor das hipóteses, na guarita do porteiro” (KIERKEGAARD apud GOUVÊA, Op. Cit., p. 89).
Essa forte rejeição por sistemas de pensamento, somada à ênfase existencial da filosofia kierkegaardiana, fez com que, não raras vezes, o nome de Kierkegaard estivesse associado ao existencialismo, chegando mesmo a ser-lhe atribuído sua paternidade. Entretanto, uma análise – mesmo superficial – do pensamento do dinamarquês mostra ser esse ponto de vista um equívoco. Segundo Gouvêa,
“quando Kierkegaard usa a palavra ‘existencial’ ou ‘verdade existencial’ ele não tem um sistema filosófico em mente, muito menos um que foi pensado depois de sua morte. Ele não se referia a uma compreensão fenomenista da realidade e não buscava uma renovação da questão do ser. Ele também não se referia a um ato sartreano de auto-apropriação em face da absoluta nulidade e falta de sentido que permeia a realidade. Mas a que se referia Kierkegaard, então, quando insistia no caráter existencial da verdade? Ele se referia, acima de tudo, à síntese do temporal e do eterno que ele detectava no ser humano. Para Kierkegaard, a existência não é redutível a antropologias materialistas ou naturalistas nem a abstrações idealistas. Por existencial, Kierkegaard se referia ao pensamento que não esquece jamais que aquele que pensa é um ser humano existente, contrariamente a um idealismo abstrato e especulativo. Ele queria dizer, com o termo ‘existencial’, viver e pensar subjetivamente contra a mera observação objetiva da realidade (que pode ser boa para as ciências naturais, mas não para as humanidades, a ética e a religião). Ele queria dizer introspecção e seriedade, e existência Coram Deo [3]” (GOUVÊA, Op. Cit., p. 93).
Assim, ainda que se tente explicar a diferenciação entre o pensamento de Kierkegaard e o dos existencialistas, considerando este último como uma espécie de secularização do primeiro, o que se alcança é, no máximo, um eufemismo. “Na verdade, Heidegger e Sartre ignoraram o único e singular propósito de toda a obra de Kierkegaard: esclarecer conceitos cristãos e mostrar como alguém realmente pode tornar-se cristão” (Ibidem, p. 91).
Portanto, sabendo-se também que, ao longo de toda sua vida e de sua obra, Kierkegaard travou um forte embate contra a cristandade, cabe aqui esclarecer essa aparente contradição. Para isso, será necessário compreender o que ele – precisamente – entende por cristianismo e cristandade.
Quando, no interior da polêmica do panfleto O Momento – que ficou conhecida comoKirkekamp –, Kierkegaard chega a afirmar – de maneira hiperbólica – que o cristianismo não existe mais, ele está se referindo expressamente ao cristianismo do Novo Testamento. “Para Kierkegaard, a religião que a Igreja Estatal da Dinamarca de seu tempo sustentava e pregava não era o cristianismo do Novo Testamento, e as pessoas em geral não pareciam percebê-lo e continuavam a considerar-se cristãs” (Ibidem, p. 122). É nesse sentido, portanto, que ele irá afirmar que a cristandade é “uma fantástica miragem, uma máscara, uma palhaçada, abrigo de todas as alucinações” (KIERKEGAARD apud ALMEIDA, 2007, p 11) [4].
Dessa forma, fica claro que a intenção de Kierkegaard nunca foi rejeitar os dogmas essenciais da religião cristã recebidos tanto pelos primeiros pais da Igreja, quanto, posteriormente, pelos reformadores. No seu entendimento, não eram os dogmas o problema da igreja, mas os cristãos. “A doutrina da Igreja estabelecida e sua organização são muito boas. Mas as vidas, nossas vidas – acredite-me estas é que são medíocres” (KIERKEGAARD apud GOUVÊA, Op. Cit., p. 124), afirmou o dinamarquês.
A morte de Deus:
“De fato, nós filósofos e ‘espíritos livres’ sentimo-nos, à notícia de que ‘o velho Deus está morto’, como que iluminados pelos raios de uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, assombro, pressentimento, expectativa – eis que enfim o horizonte nos aparece livre outra vez, posto mesmo que não esteja claro, enfim podemos lançar outra vez ao largo nossos navios, navegar a todo perigo, toda ousadia do conhecedor é outra vez permitida, o mar, o nosso mar, está outra vez aberto, talvez nunca dantes houve tanto ‘mar aberto’” (NIETZSCHE,2001, p. 233-234) [5].
Dentre as diversas polêmicas geradas a partir do pensamento do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, sua afirmação da morte de Deus, certamente, figura entre as maiores. Essa forte declaração, entretanto, para ser mais adequadamente compreendida deve ser analisada à luz de seu contexto.
Que o corpus nietzscheano apresenta um caráter eminentemente anticristão não resta muita dúvida. Partindo do pressuposto de que o mundo só se justifica como fenômeno estético, Nietzsche compreende-o como resultado de uma tensão constante entre o apolíneo e o dionisíaco – impulsos artísticos da natureza –, que não só configura o real, como confere a ele seu elemento de criatividade. Com isso, o que o mundo é passa a ser sempre resultado de um eterno processo criativo de formas. Nesse sentido, o que Nietzsche percebeu foi que “à medida que o cristianismo alija de si a experiência do devir em nome de um plano metaempírico e ahistórico, seu pensamento contradiz estruturalmente o cristianismo, o que lhe fez reconhecer o conceito de dionisíaco como essencialmente anticristão (Cf. CABRAL, 2010, p. 2) [6].
Para o filósofo alemão, o fortalecimento da metafísica nas mais variadas matizes da cultura ocidental se deu através do cristianismo. Se com Sócrates e Platão teria nascido “aquela inabalável fé de que o pensar, pelo fio condutor da causalidade, atinge até os abismos mais profundos do ser e que o pensar está em condições, não só de conhecê-lo, mas inclusive de corrigi-lo” (NIETZSCHE apudCABRAL, Op. Cit, p. 2), é no cristianismo que essa estratégia metafísica de anulação ontológica inerente ao princípio estruturador do mundo se fortalece e se dissemina.
Entretanto, há de se perceber que também em Nietzsche há uma distinção entre a pessoa de Jesus e o cristianismo histórico que não pode ser negligenciada. Fica claro em O Anticristo, por exemplo, que, apesar de tanto Jesus quanto o cristianismo serem classificados como décadent, a figura de Jesus não se coaduna com o cristo dos cristãos (Cf. CABRAL, Op. Cit, p. 3).
Ao contrário do que tentou propor Ernest Renan, Nietzsche não vê Jesus como gênio ou herói, mas como idiota.
“No lugar do herói e do gênio, Nietzsche põe a modalidade da idiotia para caracterizar fisiologicamente Jesus. Termo retirado da obra O Idiota de Dostoiévski, a idiotia não deve ser compreendida como adjetivo detrator de Jesus. O que Nietzsche entende por idiotia relaciona-se intimamente com o termo grego idiotés, cujo significado foi assumido no alemão erudito do século XVIII, a saber, “o leigo, desprovido de refinamento científico ou artístico, mas também o indivíduo 'original', alheio à realidade prosaica dos negócios e afazeres” (GIACÓIA JUNIOR, O. Labirintos da alma, p.73). Se Nietzsche assume a ideia de que Jesus possui originalidade por estar alheio a ‘todo conceito de tempo e lugar, ao que é sólido, instituição, Igreja’, isto não significa que Jesus seja um paradigma superior de vitalidade. A estruturação fisiológica de Jesus diz o contrário. É comparada à ‘doentia excitabilidade do tato’, que recua ante um objeto sólido. A consequência é a fuga de toda solidez do real, produto de um “ódio instintivo à realidade”. A presença do ódio no tipo do Redentor não engendra práticas bélicas de aniquilação da realidade instituída, pois Jesus é “alérgico” às ações combativas que reproduzam o caráter agonístico do real. O ódio à realidade engendra o subterfúgio do mundo ‘interior’. A interioridade surge como sintoma da ‘extrema capacidade de sofrimento e excitação’ (AC/AC, §30)”. (Ibidem, p. 11).
E aqui, sofrimento não tem seu significado ligado ao uso corriqueiro da palavra, como, por exemplo, quando se experimenta uma dor causada por uma doença ou, então, a perda de um ente querido. De outro modo, deve ser compreendido ontologicamente. Partindo do conceito de vontade de poder, a dor é entendida como fator inerente à realidade, “gerada pela necessidade de rearticulação da malha vital que caracteriza um singular, a partir da assunção do devir” (Ibidem, p. 11). Assim, a própria dinâmica da existência – caracterizada por Nietzsche como agonística – produz esse sofrer que se expressa nesses processos de dissolução e rearticulação das forças envolvidas na constituição da vontade de poder.
Nesse sentido, a atitude de Jesus diante da vida, em direção ao mundo interior, é compreendida por Nietzsche como uma fuga que busca o abrandamento do desprazer e a conservação de um tipo incapaz de assumir a dinâmica aflitiva da vontade de poder. Em outra palavras, afirma Cabral: “Incapaz de assumir a conflitividade inerente à vontade de poder, o tipo do Redentor encontra prazer em uma vida refugiada em uma interioridade alheia à solidez do real” (Ibidem, p. 12).
Já o cristianismo, por sua vez, segundo Nietzsche, nasce não de Jesus, mas a partir da atribuição, pelos cristãos, de traços alheios a ele. Se a mensagem de Jesus se concentrava no Reino de Deus como um estado do coração onde já não há mais oposições, o Cristo produzido pelo cristianismo será “o anunciador de uma redenção futura, de um julgamento futuro, de uma promessa de eternidade futura e de uma vingança também futura” (Ibidem, p.13). Dessa forma, tudo o que Jesus teria negado como forma de evitar conflitos, a cristandade assume como cerne da mensagem cristã.
“Jesus não podia querer outra coisa, com a sua morte, senão dar publicamente a mais forte demonstração, a prova de sua doutrina... mas seus discípulos estavam longe de perdoar essa morte – o que teria sido evangélico no mais alto sentido; ou mesmo de oferecer-se para uma morte igual, com meiga e suave tranquilidade no coração... Precisamente o sentimento mais ‘inevangélico’, a vingança, tornou a prevalecer. A questão não podia findar com essa morte: necessitava-se de ‘reparação’, ‘julgamento’ (– e o que pode ser menos evangélico do que ‘reparação’, ‘levar a julgamento’!). Mais uma vez a expectativa popular de um Messias aparece em primeiro plano; enxergou-se um momento histórico: o ‘reino de Deus’ vai julgar seus inimigos... Mas com isso está tudo mal compreendido: o ‘reino de Deus’ como ato final, como promessa! Mas o evangelho fora justamente a presença, a realização, a realidade desse ‘reino de Deus’...” (AC/AC,§40 apud CABRAL, Op. Cit., p. 13).
Aproximações e diferenças:
Como bem nota Karl Jaspers em seu Razão e Existência, a semelhança dos pensamentos de Kierkegaard e Nietzsche é tanto mais característica quando se está na presença de uma aparente diferença essencial entre a fé cristã de um e o acentuado ateísmo de outro. Segundo o filósofo alemão que se debruçou sobre as filosofias de ambos os autores, em uma época em que a reflexão vive de aparência, como se o passado seguisse subsistindo, o desejar e o rejeitar a fé se pertencem mutuamente. Dessa forma, não é de se estranhar que o crente se pareça com o ateu e o incrédulo se assemelhe ao crente: ambos estão situados na mesma dialética (Cf. JASPERS, 1959, p. 28) [7].
Também Gilles Deleuze, da mesma forma, consegue enxergar pontos de contato entre os pensamentos de Kierkegaard e Nietzsche que, a despeito das evidentes disparidades entre um e outro, acabam por aproximá-los mais do que um primeiro olhar superficial poderia sugerir. Para o francês, “uma afirmação de Nietzsche vale também para Kierkegaard: não sou homem, sou dinamite. Eles explodem com a mediação hegeliana e, a propósito deles, fala-se de bom grado em ultrapassamento da filosofia” (DELEUZE apud ALMEIDA, Op. Cit., p. 62).
De fato, ambos os autores dialogam intensamente com a tradição e nela encontram a mola propulsora de suas filosofias. Enquanto Kierkegaard responde ao abstrato idealismo racionalista da modernidade com seu total desprezo pela metafísica ou por questões epistemológicas, deslocando o centro de seu pensamento para a existência, onde a missão primordial do homem é tornar-se cristão, Nietzsche vai ainda mais longe e, abolindo a própria ideia de transcendência – tão cara em Kierkegaard – mergulha no niilismo proveniente de um mundo entendido como resultante da vontade de poder.
A forte ênfase na figura do indivíduo também deve ser destacada como ponto de convergência nas obras dos dois autores.
“Kierkegaard era enfático em que o evangelho não era apenas a comunicação de um dogma, mas primeiro e principalmente uma comunicação de vida. Isto é, a transmissão de umaWetanschauung e um estilo de vida, a condução de uma nova existência. Verdade cristã não é meramente uma série de doutrinas mas antes e principalmente apoia-se numa correta relação de fé. Mera aceitação intelectual do dogma cristão não é fé mas um tipo de superstição. Nem a fé salvadora é apenas o despertar da alma para a presença penetrante de Deus. Ser um cristão no sentido do Novo Testamento significa que o ser, como indivíduo isolado, relaciona-se pessoalmente com Cristo por meio de uma decisão apaixonada e de coração que é estimulada pelo desespero em face de nossa culpa perante Deus. Se a fé é feita dependente de nossa compreensão da doutrina, então a habilidade de tornar-se cristão depende da diferente capacidade intelectual dos indivíduos, o que é ridículo. O cristianismo se sustenta ou cai pela possibilidade igual de cada um tornar-se cristão pela relação de fé em Jesus Cristo. Assim, uma pessoa não pode simplesmente ter a verdade, mas deve estar na verdade, viver na verdade” (GOUVÊA, Op. Cit., p. 156).
De modo semelhante, ainda que não passe pelo cristianismo ou por qualquer outra ideia de transcendência, também “a ética nietzscheana é uma ética do indivíduo, da necessidade de, cuidando de si mesmo, transvalorar-se e ‘tornar-se si mesmo’, transformar-se em si mesmo” (LAGES, 2010, p. 62) [8]. Ou, nas belas palavras do próprio Nietzsche através de Zaratustra: “E se alguém passa através do fogo pela sua doutrina – que demonstra isso? Mais vale, na verdade, que a nossa doutrina venha do nosso próprio incêndio!” (NIETZSCHE, 1981, p. 106) [9].
Por outro lado, como já deve ter ficado claro até aqui, há também pontos irreconciliáveis em suas filosofias. Esses aspectos, entretanto, para serem adequadamente compreendidos necessitam de uma análise em um nível mais profundo: o dos pressupostos.
Como já visto anteriormente, o mundo nietzscheano surge a partir de uma tensão insolúvel entre o apolíneo e o dionisíaco, responsável não só por dar a ele seu componente de criatividade, como por fazer dele um fenômeno estético. Todavia, se o filósofo holandês Herman Dooyeweerd está correto em sua afirmação de que todo pensamento teórico está sempre alicerçado sobre um fundamento religioso de caráter suprateórico (motivo-base religioso da cultura) [10] que seria o responsável pelo direcionamento do ego pensante, é necessário penetrar nessas raízes mais profundas dos pensamentos de Nietzsche e Kierkegaard.
Segundo Dooyeweerd, a religião grega pré-olímpica da vida e da morte – de onde Nietzsche consegue identificar o conflito apolíneo/dionisíaco que serve de esteira para seu pensamento – acabou por deificar
“o fluxo perene de vida orgânica que se originava da mãe-terra e que não podia se fixar nem ser restrito por alguma forma corporal. Supunha-se que desse fluxo de vida na ordem do tempo, as gerações de seres separavam-se a apareciam em formas corporais individuais. A forma corporal poderia ser mantida apenas à custa de outros seres vivos, sendo a vida de um a morte de outro. Assim, haveria injustiça em qualquer forma fixa de vida que, por essa razão, precisava ser paga com o horrível destino da morte, designada pelo termos gregos deanangke e heimarmenè tuché. Esse é o significado das palavras misteriosas do filósofo jônico da natureza, Anaximandro: ‘A origem divina de todas as coisas é o apeiron (i.e., aquilo que carece de uma forma restritiva). As coisas retornam para aquilo do qual elas se originaram em conformidade com a lei da justiça. Pois elas pagam umas às outras a penalidade e a retribuição por sua injustiça na ordem do tempo” (DOOYEWEERD, 2010, p. 229-230) [11].
Assim,
“o motivo central da religião arcaica da vida e da morte encontrou uma clara expressão na visão filosófica de physis, ou natureza, em Anaximandro. Aqui, ‘natureza’ é o motivo da corrente de vida sem forma, em fluxo perene por meio do processo de vir a ser e desvanecer, o qual pertence a todas as coisas perecíveis que nascem em forma corporal e estão sujeitas àanangke. Esse é o sentido original do motivo grego da matéria, originado de uma deificação do aspecto biótico de nosso horizonte temporal de experiência e que encontrou sua mais espetacular expressão no culto a Dionísio, importado da Trácia” (Ibidem, p. 230).
Nesse sentido, se a tese de Dooyeweerd estiver correta em sua análise dessas raízes mais profundas que sustentam o pensamento grego – do qual Nietzsche é declaradamente grande devedor –, há de se considerar – como queria Heidegger [12]– que sob a filosofia nietzscheana há mais metafísica do que o próprio Nietzsche gostaria de admitir.
Kierkagaard, por sua vez, de modo totalmente diverso de Nietzsche, não parece apresentar nenhum problema em afirmar sua heteronomia em relação a Deus. Na verdade, conforme bem ressalta Gouvêa, melhor do que o termo heteronomia para se referir aos fundamentos da filosofia kierkegaardiana, seria a ideia de uma “cosmonomia[13] divinamente sancionada” (GOUVÊA, Op. Cit., p. 222). Isso porque
“como a ética cristã é baseada no nomos do Criador, a ética bíblica não é heteronomia pois não é heteroios em relação a alguém que vive coram Deo. Ética bíblica é a exposição e elucidação dos nomiomata revelacionais, isto é, o nomos ético-cósmico em contraste com aanomia pecado, rebelião e idolatria. Estes nomiomata da ética bíblica são a base para o que Kierkegaard afirma sobre o homem que conheceu o Deus vivo: que ‘ele determina sua relação com o universal por sua relação com o absoluto, não sua relação com o absoluto por sua relação com o universal’” (GOUVÊA, 2009, p. 234) [14].
Dessa forma, o que fica bastante evidente ao longo de toda a obra kierkegaardiana – e que se configura como principal ponto de divergência em relação a Nietzsche – é, justamente, este esforço constante do dinamarquês em rejeitar toda e qualquer possibilidade de autonomia humana. Em Kierkegaard, assim como em Nietzsche, o indivíduo é relação, mas não uma relação de forças cegas que atiram o mundo no nada. Pelo contrário:
“O eu é a síntese consciente de infinito e de finito em relação com ela própria, o que não se pode fazer senão contatando com Deus. Mas tornar-se si próprio, é tornar-se concreto, coisa irrealizável no finito ou no infinito, visto o concreto em questão ser uma síntese. A evolução consiste pois em afastar-se indefinidamente de si próprio, numa ‘infinitização’. Pelo contrário, o eu que não se torna ele próprio permanece, saiba-o ou não, desesperado” (KIERKEGAARD, 1979, p. 208) [15].
Assim, se em Nietzsche a verdadeira liberdade e concretização do eu se dá com a morte de Deus e suas implicações aqui já analisadas, em Kierkegaard a realização do indivíduo – do qual Abraão, enquanto pai da fé, é o exemplo maior – só é possível numa existência Coram Deo.
Conclusão:
Apesar de chegarem a destinos bastante distintos em suas filosofias, não se pode negar a amplitude da semelhança existente entre os pensamentos de Friedrich Nietzsche e Søren Kierkegaard. O zelo incansável com que cada um tratou a questão do cristianismo, ironicamente, parece ter feito mais pela religião cristã do que qualquer sacerdote ou membro de igreja poderia fazê-lo.
Se os pressupostos de onde partiu cada um, obviamente, os conduziram a lugares filosóficos divergentes e até mesmo irreconciliáveis, o que deve ser ressaltado, entretanto, é a mensagem que os une, a saber: a busca pela realização do indivíduo na concretude da existência.
Ainda que Kierkegaard atribua a Deus a instituição do mundo e tenha a fé como sua relação primordial com a existência, é oportuno salientar que, também para o dinamarquês, a vida é agonística. Se em Nietzsche o conflito que coloca a realidade se dá na origem – com Apolo e Dionísio –, em Kierkegaard a condição pecaminosa do homem lança-o ao paradoxo, fazendo com que a realidade seja essencialmente contraditória.
A grande e decisiva diferença de suas filosofias, segundo o ponto de vista aqui expresso, fica por conta da solução apontada por cada um dos filósofos diante desse quadro de um mundo agonizante. Enquanto Nietzsche mergulha de cabeça no desespero niilista de uma existência sem Deus, o melancólico Kierkegaard, assumindo sua fraqueza, encontra abrigo, pela fé, na presença do Criador, possibilitando-lhe não o fim do conflito, mas a força existencial necessária para enfrentá-lo.
Certa vez, em seu diário, refletindo sobre sua vocação na vida e o rompimento com a vida estética que levava e com o pensamento hegeliano que ate então imperava, o jovem Kierkegaard, aos 22 anos, escreve o seguinte:
“[...] aqui eu me posto em frente a um grande ponto de interrogação [...] eu me interesso por demasiadas coisas, e não decisivamente por alguma... o que realmente preciso é ter claro o que devo fazer; não o que devo saber. O que importa é encontrar uma finalidade, ver o que Deus realmente quer que eu faça; a coisa crucial é encontrar uma verdade que seja verdade para mim, encontrar a idéia pela qual eu esteja disposto a viver e a morrer” (KIERKEGAARD apud GOUVÊA, 2006, p. 43).
Já Nietzsche, obviamente em outro tom, mas com significado não muito distante do expresso por Kierkegaard, usa a boca de Zaratustra para afirmar esta que, certamente, consta entre as mais belas declarações já tiradas de sua pena:
“Mas o pior inimigo que podes encontrar serás sempre tu mesmo; tu mesmo estás à tua espreita em cavernas e florestas. Solitário, percorres o caminho no rumo de ti mesmo! E teu caminho passa por ti mesmo e pelos teus sete demônios! Herege, serás para ti mesmo, e feiticeiro e vidente e doido e céptico e ímpio e celerado. Arder nas tuas próprias chamas, deverás querer; como pretenderias renovar-se se antes não te tornasses cinza!” (NIETZSCHE, Op. Cit., p. 79).
Assim – a despeito do que tentou mostrar Hannah Arendt[16] quando afirmou permanecerem os dois filósofos ainda atados à tradição em suas críticas –,fica evidente que tanto o dinamarquês quanto o alemão cumpriram seu papel naquilo que se propuseram, seja através da melancolia piedosa de Kierkegaard ou da acalorada busca existencial de Nietzsche.
Certamente, o tipo de caminho que um e outro escolheu trilhar dentro da filosofia, chegando mesmo a tornar difícil uma acurada distinção entre seus pensamentos teóricos e suas próprias experiências no chão da vida, definitivamente, não está aberto a refutações. Afinal, a existência – como bem lembra Dooyeweerd [17] – não é teoria para que seja colocada em xeque, muito menos julgada a partir de pressupostos já previamente rejeitados. Apenas uma boa dose de tolice poderia mover alguém a embrenhar-se nesse caminho.
desejo felicidadeS🙈🙉🙊
'MEMENTO MORI'💀
Daniel Bastos
Bibliografia:
- ALMEIDA, Jorge Miranda de; VALLS, Álvaro L. M.. Kierkegaard. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Coleção passo-a-passo).
- ARENDT, Hannah. A tradição e a época moderna. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009.
- CABRAL, Alexandre M.. Nietzsche e a onto-teo-logia: uma polêmica heideggeriana. Revista Trágica: estudos sobre Nietzsche. 2º semestre de 2011 – Vol. 4, nº 2, pp. 01-17
- ___________________. Nietzsche e a semântica da vontade de poder. Revista Trágica: Estudos sobre Nietzsche – 1º semestre de 2009 – Vol.2 – nº1 – pp.20-37
-___________________. O Jesus de Nietzsche: a ambiguidade de uma polêmica. Revista Trágica: estudos sobre Nietzsche – 1º semestre 2010 – Vol.3 – nº1 – pp. 01-20
- CARVALHO, G. V. R. (Org.); LEITE, Cláudio A. C. (Org.); CUNHA, M. J. S. (Org.).Cosmovisão Cristã e Transformação: Espiritualidade, Razão e Ordem Social. Viçosa: Ultimato, 2006.
- DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental. [Tradução: Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho, Rodolfo Amorim Carlos] – São Paulo: Hagnos, 2010.
- GOUVÊA, Ricardo Q.. A Paixão pelo Paradoxo. São Paulo, SP: Fonte Editorial, 2006.
- ___________________. A Palavra e o Silêncio. São Paulo, SP: Fonte Editorial, 2009.
- JASPERS, Karl. Razon y Existencia. Buenos Aires: Editorial Nova, 1959.
- KIERKEGAARD, Søren. O desespero humano. In: Os pensadores. [Tradução: Adolfo Casais Monteiro] – São Paulo: Abril Cultural, 1979.
- ____________________. Temor e Tremor. In: Os pensadores. [Tradução: Maria José Marinho] – São Paulo: Abril Cultural, 1979.
- LAGES, Lucas N.R.M.V.. O demônio de Nietzsche: Niilismo, Eterno Retorno e Ética do cuidado de si. 2010. 71f. Dissertação (Mestrado em Ética e Epistemologia) – Centro de Ciência Humanas e Letras, Universidade Federal do Piauí, Teresina. 2010.
- NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. [Trad. Paulo César de Souza] – São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
- ___________________. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.
[1] KIERKEGAARD, Søren. Temor e Tremor. In: Os pensadores. [Tradução: Maria José Marinho] – São Paulo: Abril Cultural, 1979.
[2] GOUVÊA, Ricardo Q.. A Paixão pelo Paradoxo. São Paulo, SP: Fonte Editorial, 2006.
[3] Para Kierkegaard, a figura de Abraão subindo o monte Moriá para o sacrifício de seu filho Isaque por ordem de Deus é o protótipo do indivíduo Coram Deo, i.e., o indivíduo isolado perante Deus.
[4] ALMEIDA, Jorge Miranda de; VALLS, Álvaro L. M.. Kierkegaard. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Coleção passo-a-passo).
[5] NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. [Trad. Paulo César de Souza] – São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
[6] CABRAL, Alexandre M.. O Jesus de Nietzsche: a ambiguidade de uma polêmica. Revista Trágica: estudos sobre Nietzsche – 1º semestre 2010 – Vol.3 – nº1 – pp. 01-20
[7] JASPERS, Karl. Razon y Existencia. Buenos Aires: Editorial Nova, 1959.
[8] LAGES, Lucas N.R.M.V.. O demônio de Nietzsche: Niilismo, Eterno Retorno e Ética do cuidado de si. 2010. 71f. Dissertação (Mestrado em Ética e Epistemologia) – Centro de Ciência Humanas e Letras, Universidade Federal do Piauí, Teresina. 2010.
[10] Para Dooyeweerd, “o princípio motivador e controlador de uma cultura não é, primariamente, a política, a economia, ou as idéias, mas a religião. Cada comunidade espiritual é unida por um espírito comum, [...] que controla ativamente a vida dessa comunidade. Dooyeweerd chamou esse poder de motivo–base religioso (religious ground-motive) da cultura. Os motivos-bases são as forças motivadoras que dominaram o desenvolvimento da cultura, da ciência e da filosofia ocidental. Cada um deles estabeleceu uma comunidade espiritual entre aqueles que o iniciaram, e permaneceu oculto como o princípio espiritual subjacente de toda a produção cultural. Nesse sentido, os pensadores ocidentais muitas vezes foram dominados por um determinado motivo-base sem nem mesmo terem consciência disso; na verdade, o sentido religioso dos motivos-bases está além do alcance desses pensadores justamente porque toda explicação histórica, em si mesma, pressupõe um ponto de partida central e suprateórico que é dado por um motivo-base religioso” (Cf. CARVALHO, G. V. R. . 2006, p. 125).
[11] DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental. [Tradução: Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho, Rodolfo Amorim Carlos] – São Paulo: Hagnos, 2010.
[12] Segundo Heidegger, “mesmo que um pensamento seja considerado ateu, se ele não põe em jogo a diferença irredutível entre ser e ente, ele caracteriza-se por ser onto-teo-lógico. Este seria justamente o caso de Nietzsche” (CABRAL, 2011, p. 10).
[13] Baseado na interpretação calvinista da soberania de Deus sobre todas as coisas, esse conceito utilizado por Dooyeweerd indica que o cosmos teria imprimido nele um conjunto de leis divinas que regeriam cada aspecto da realidade temporal. Assim, para Dooyeweerd, há um conjunto de leis divinas que deveriam reger a política, a economia, a sociedade, a ética, a biologia, a física, etc. Toda essa diversidade modal de leis, entretanto, “está relacionada à unidade central da lei divina, ou seja, o mandamento de amar a Deus e ao nosso próximo” (DOOYEWEERD, Op. Cit., p. 56).
[15]KIERKEGAARD, Søren. O desespero humano. In: Os pensadores. [Tradução: Adolfo Casais Monteiro] – São Paulo: Abril Cultural, 1979.
[16] Cf. ARENDT, Hannah. A tradição e a época moderna. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009.
[17] Cf. DOOYEWEERD, Op. Cit. p. 67
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